2.4.07

COMO UM SAX NO TELHADO (Para Cortázar)


A Argentina estava em guerra, os alemães eram os inimigos, mas eles permitiram que o garoto Julio fosse embora, pacificamente, com sua família, para temporadas na Espanha e Suíça. As lembranças da sua infância não eram precisas, vinham como raios, lembrá-lo que um dia deveria voltar a ver com outros olhos a Buenos Aires querida, redescobrir o sabor do alfajor com seu doce de leite escuro e poder lembrar de quando a avó materna contava que para obter o ponto exato do doce, era preciso esperar a primeira lua cheia de cada mês, e ofertar o choro de nascimento das crianças de cabelos dourados que nasciam naquela noite. Acreditando que o fantástico fazia parte da vida cotidiana, ele cresceu.
Sempre fora tímido com os amigos e com as mulheres, sempre fora elegante com as gravatas e os chapéus, sempre teve cara de bom moço a enfeitar fotografias em preto e branco. Para evitar que lhe apertassem as bochechas, deixou a barba crescer, e ela se transformou em marca registrada de homem solitário. Gostava dessa condição, acreditava que a solidão era uma fiel companheira que revelava seus melhores e piores espelhos. Nos seus reflexos via o Dr. Jekyll e Mr. Hyde, e na loucura reconhecia a responsabilidade que teria pelo decorrer da vida: escrever as intuições que surgissem em sua cabeça, se confrontar com os duplos que era.
Ao deitar a cabeça no travesseiro fazia orações a outro Julio, o Verne. E até sonhava que era invisível, e nessa condição de dono do mundo, dançava jazz vagando pelas ruas enquanto ajeitava os óculos redondos de armação preta, e refletia sobre os cartazes que faziam propagandas e comunicados nos muros. Sofria por pensar que o primeiro que fora colado era agora o esquecido pelos demais pregados em cima. Os pensamentos lhe doíam, jamais seria um intelectual das idéias, se isolava por não gostar de discussões, nunca soube defender seus pontos de vista. Guardava-os para si e se conformava em ter uma vida como um disco arranhado a girar na vitrola
Passava os dias a descobrir seu lugar, aos 70 anos deixou de passar, e nunca descobriu que sua casa era seu próprio corpo que nunca parou de crescer. Um dia seria capaz de tocar as estrelas. Adormeceu sem saber que era perseguidor de si mesmo, que era prisioneiro das confissões de seus próprios jogos:
Ninguém suporta as coisas por muito tempo aqui, nem sequer você e eu, é preciso viver combatendo, é a lei, é a única maneira que vale a pena, mas dói...
* ficção de uma cronópio

3 comentários:

Sheila Campos disse...

Impressionante a sua escrita!
Você é, verdadeiramente, uma poetisa!
Poetisa de poemas, de prosa, de crônicas, sonhos e delírios! Como é lindo sorver o que derrama de suas tintas!
Muitos beijos, lolita louca! [:D]
Sempre lendo-a!

LM disse...

Está mais que digerível. Está degustável!
Beijos e beijos

Andrés disse...

Deu até uma pequena nostalgia cronopiana ao passear por essas líneas tão delicadamente descritivas...