5.4.07

UM DIA QUALQUER


Gostava de se vestir de preto e caminhar na chuva, era a melhor alternativa para encontrar sossego em seus pensamentos turvos. Acreditava que a água que vinha do céu limparia suas dúvidas e traria a primavera. Não tinha medo dos trovões. Sentava na calçada e esperava por eles, anunciados pelos raios, como quem espera o grande amor durante toda uma vida. Quando a chuva era rápida, logo aparecia o sol, e ele continuava sentado até se secar, gostava da sensação de quentura que proporcionava a pele, mas se acontecesse uma tempestade, esperava ela acabar e, em passos apressados, voltava para casa, sempre espirrava, sempre gripado. Se alguém falava para se cuidar, respondia que era “resfriado molhado” e ninguém contestava, justamente por não entender o que aquele termo significava. Se ele dizia, acreditavam, afinal era um senhor respeitadíssimo no bairro, conhecido por ter escrito durante 30 anos para a gazeta da cidade. Era o homem das informações, era o cidadão responsável por levar notícia aquele canto perdido. Era quem fazia sombra em dias quentes.
Nunca se casou, nunca foi visto com mulher apesar de toda semana encomendar arranjos à floricultura da senhora Araci. As beatas se benziam por pensar que ele era torto no sexo, e ele não se importava, não era de briga, e nem acreditava em sermões religiosos, preferia ser andarilho sem fé. E o padre fazia questão de o encontrar, fingindo que era por acaso, para discutir futebol. Torciam pelo mesmo time, mas na verdade o interesse do “homem de Deus” era manter a gorda doação que seu conterrâneo esportivo contribuía mensalmente. E numa mesmice insossa o relógio andava, era dia e noite a mesma coisa. A mesma ausência de coisas que para dar sentido ao nada. Tudo vazio. Tudo cinza. As pessoas se diluíam em conta-gotas de tédio. E ele, de binóculo, era um bom espectador do cotidiano.
Aos domingos, em fins de tarde, sentava no boteco da esquina para beber umas doses de cachaça, esse vício era teimoso, não o abandonava. Bebia até sentir que estava tonto, cambaleava para casa e caía na cama, só acordava na segunda, o álcool trazia uma vontade de tomar banho frio, e isso o motivava a viver a semana que sempre começava com gosto amargo. Acordava cedo e saía sem rumo, só voltava lá pelas 7 horas da noite, todo dia era assim, até que um dia ele não voltou. Deu 23h e nada dele surgir na esquina, passou uma semana e nada dele encomendar as flores, passou um mês e ninguém sabia das notícias, um ano depois não se comentavam mais nele.

UMA MANHÃ


Ela abriu a cortina e deixou o sol entrar com seus raios de dia, com suas mãos de fogo, com sua claridade absurda depois de uma noite insone. Precisava daquele ar para criar coragem de tomar o primeiro passo importante na grande mudança de sua vida. Vestiu-se de branco, lavou bem o rosto e colocou Nina Simone para cantar enquanto os passarinhos pulavam pelas árvores das ruas. Morava no 14º andar, o medo de altura a desafiava constantemente, tinha vertigens se olhava muito tempo para baixo, mas desde que adquiriu sua independência financeira, só escolhia lugares altos para habitar suas loucuras, dizia que era para sentir a sensação de liberdade que insiste em fugir de quem mora em cidade grande. Ficou pensativa diante os porta-retratos que enfeitavam a cômoda, era a sua vida narrada de maneira estática, pedaços de histórias mal contadas, resquícios que a memória não saberia esquecer, pois elas, as fotografias, não deixariam jamais. Esse estado de contemplação a deixava com a garganta seca, dava-lhe agonia, coceira na virilha, dor de cabeça! Temia pensar demais e descobrir que tudo o que vivera até ali tinha sido um lamentável engano. Mas aquela era sua vida, era o que a tinha conduzido até aquela manhã ensolarada, era o que determinaria o que estava por vir. Caiu na cama e ficou observando o teto. Sempre se imaginava caminhando de ponta cabeça, tendo de pular obstáculos pra adentrar outro ambiente, era assim que via sentido naquilo que não sabia explicar, uma bela metáfora da existência humana. Adormeceu.

Acordou e percebeu que duas horas haviam passado, como sempre não recordava se tinha sonhado. Levantou mal humorada e foi até a cozinha preparar um café. Bebeu amargo por preguiça de procurar o adoçante, que diferença fazia? Inventou uma teoria de que as bebidas mereciam degustação em seu estado de brutalidade. Sentiu os pés molhados, se esqueceu de fechar a torneira do banheiro quando lavou o rosto. Perderia dois tapetes, justo os que causaram tanta dor de cabeça na hora do “trocando em miúdos” do primeiro e único casamento. Foi tomada pelo cinismo, se os vizinhos a chamavam de louca pelos corredores, por ela usar a piscina da cobertura para lavar suas calcinhas, poderia sustentar o título sem hesitação. Não pensou duas vezes, arrastou os tapetes ensopados até a janela e os deixou voar como as fábulas do seu imaginário. Entrou em pânico quando ouviu o estrondo, seu ato heróico destruiu o carro do morador mais gostoso do condomínio. Sentiu vergonha. Correu para o chuveiro e deixou a correnteza misturar as suas lágrimas. E agora? O interfone tocava sem parar, a campainha disparava, ouvia os murros nas portas. Saiu do boxe olhou-se no espelho. Quem era aquela mulher? Selma! Selma! Selma! Era seu nome que chamavam. E se escondesse embaixo da cama? Sentiu-se como criança que foge por ter tirado nota vermelha. Teria de agir rapidamente! Abriu o gás do fogão e ateou fogo na casa! Agora era ela quem gritava por socorro, pensariam que numa atitude de autodefesa se livrou dos tapetes. A porta seria derrubada, esperava por isso, e, na dúvida, não quis assistir ao enterro da última quimera, pulou da janela para encontrar o vento. Morreu!

2.4.07

COMO UM SAX NO TELHADO (Para Cortázar)


A Argentina estava em guerra, os alemães eram os inimigos, mas eles permitiram que o garoto Julio fosse embora, pacificamente, com sua família, para temporadas na Espanha e Suíça. As lembranças da sua infância não eram precisas, vinham como raios, lembrá-lo que um dia deveria voltar a ver com outros olhos a Buenos Aires querida, redescobrir o sabor do alfajor com seu doce de leite escuro e poder lembrar de quando a avó materna contava que para obter o ponto exato do doce, era preciso esperar a primeira lua cheia de cada mês, e ofertar o choro de nascimento das crianças de cabelos dourados que nasciam naquela noite. Acreditando que o fantástico fazia parte da vida cotidiana, ele cresceu.
Sempre fora tímido com os amigos e com as mulheres, sempre fora elegante com as gravatas e os chapéus, sempre teve cara de bom moço a enfeitar fotografias em preto e branco. Para evitar que lhe apertassem as bochechas, deixou a barba crescer, e ela se transformou em marca registrada de homem solitário. Gostava dessa condição, acreditava que a solidão era uma fiel companheira que revelava seus melhores e piores espelhos. Nos seus reflexos via o Dr. Jekyll e Mr. Hyde, e na loucura reconhecia a responsabilidade que teria pelo decorrer da vida: escrever as intuições que surgissem em sua cabeça, se confrontar com os duplos que era.
Ao deitar a cabeça no travesseiro fazia orações a outro Julio, o Verne. E até sonhava que era invisível, e nessa condição de dono do mundo, dançava jazz vagando pelas ruas enquanto ajeitava os óculos redondos de armação preta, e refletia sobre os cartazes que faziam propagandas e comunicados nos muros. Sofria por pensar que o primeiro que fora colado era agora o esquecido pelos demais pregados em cima. Os pensamentos lhe doíam, jamais seria um intelectual das idéias, se isolava por não gostar de discussões, nunca soube defender seus pontos de vista. Guardava-os para si e se conformava em ter uma vida como um disco arranhado a girar na vitrola
Passava os dias a descobrir seu lugar, aos 70 anos deixou de passar, e nunca descobriu que sua casa era seu próprio corpo que nunca parou de crescer. Um dia seria capaz de tocar as estrelas. Adormeceu sem saber que era perseguidor de si mesmo, que era prisioneiro das confissões de seus próprios jogos:
Ninguém suporta as coisas por muito tempo aqui, nem sequer você e eu, é preciso viver combatendo, é a lei, é a única maneira que vale a pena, mas dói...
* ficção de uma cronópio

1.4.07

MAESTRO!


Venho declarar meu amor a música brasileira! E que voz é essa que me encanta? Soa em uníssono? Talvez a mistura que dita a diversidade e riqueza que marcam nossa cultura musical seja resultado da pluralidade dos povos que correm em nossas veias. Brasil deveria se chamar Brasis! E o som que veio da floresta ganhou o rádio e a experimentação, invadiu os festivais, criou movimentos diferenciais, se utilizou de tecnologias... E explodiu nos meus ouvidos! Não saberia citar apenas uma voz que me delira, justamente por causa do ecletismo. Não falarei do meu amor por Bethânia ou a admiração por Chico Buarque (que encabeçariam uma lista infindável de pessoas e momentos que contribuem ao resultado da metamorfose que sou), gosto tanto de tanta gente que seria injusto não delatar a falácia daquilo que me agrada em ( )

* abro um parêntese para as vozes que fazem a minha cabeça.

A vida se encarrega de trazer quem me acompanhará em ritmos e acordes, quem abrirá minhas claves para os sóis das canções. E assim, onde houver um radinho à pilha nos confins do nosso país, haverá um ouvido atento no som que melhora nossa qualidade de vida. Música é movimento pois As pessoas não estão iguais, não foram terminadas, estão sempre mudando, afinam e desafinam...

E no baú das cifras é certo que eu encontre uma voz que desagrade, ela será aquela que não ouvirei, e aí entram fatores determinantes na minha acepção do "não gostar", por exemplo, a irritação devido as manifestações da personalidade. Me desagrada a voz atrelada a todo o resto que compõe quem fala, mas como a vida é curta, meu tempo é destinado a brindes com as vozes que somam a alegria mesmo que seja depressiva ou nostálgica, pois como aprendi com meu padrinho Vinícius de Moraes:

Para haver um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza se não não se faz um samba não!

UM OLHAR


No que consiste o olhar?

Ao mirarmos um alvo, quantas vezes são necessárias a observação, para percebermos o que, num primeiro encontro, passa despercebido? Quando enxergamos com a sensibilidade, ela aumenta, e aumenta com ela nossa exigência crítica. Cada vez que olharmos para algo, o novo surgirá. Para isso é bom tomarmos emprestado o olhar do estrangeiro, o que nos fará sentir a expectativa da estréia e as nuances dos detalhes. O olhar do outro acrescentará sombras e luzes, e o aprendizado acontecerá com a experiência prática, com a educação do olhar, com a receita de ver o que está além do campo de visão, afinal, vemos com os olhos ou com a mente? No filme "Quem Somos Nós" constatamos que, se o objeto não faz parte do nosso imaginário, não o vimos se ele está a nossa frente. O que também causa invisibilidade são fatores como: superficialidade, preconceito, medo... O que me faz discordar da declaração de Suzanne Langer (teórica filosofa da arte e obra de arte): Ver é em si um processo de formulação; nosso entendimento do mundo visível começa no olho.

Poderia ter 5 graus de miopia e ver o que quem tem uma visão clínica perfeita não é capaz. E também dependemos dos condicionamentos culturais.

"Olho e olhar em português tem proximidade, mas em outras línguas a distinção se faz clara". Outro fator instigante: o Guernica original é o mesmo que se fixou em minhas retinas? Quando fotografamos com os olhos nos apropriamos da imagem admirada, quem é o observador? Quem é o observado?

No "Livro dos Abraços" do Eduardo Galeano, um dos relatos é sobre uma atriz que foi abordada por uma senhora com a seguinte indagação: _ Quando eu te olho você também me vê? (Ela disse que não soube o que responder)

As interpretações e conclusões são múltiplas. Fica o alerta para que mantenhamos os olhos abertos. Que a cegueira não nos aprisione!


* Para reflexão recomendo "Elogio da sombra" do amigo Jorge Luís Borges.