28.8.10

LONA

desculpa por afastar o sol do seu sábado
uma peneira seria mais elegante

minha gentileza travestiu-se do indelicado

pequei sem ser santa
quando propus abrir meu coração
e despejar em suas mãos
gotas de tranquilidade

me reconheço
ao desconhecer

e o amanhecer trouxe trovoadas.

desculpa por eu ser má
malandra em corda bamba

nem sempre o circo é feliz

não sou domadora
nem trapezista
estou mais para escafandrista

27.8.10

OUTRA ONDA



O sal me lambe as entranhas

E apaga qualquer sofrimento

O mar é azul

Meus pés

Marcam na areia

O encontro do acaso

Construo castelos

Ao vento

Ah eu quero navegar sem âncora

Me atirar ao fundo do oceano

Livre me farei perguntas
Solta me trarei respostas

E o sal

No canto da boca

Vai embora

26.8.10

SUSPIRO

Gradualmente
As vistas
Ficarão mais cansadas
Que o habitual

As pernas
Dançarão
Bambas
Pelas ruas,
As mãos
Serão fracas
Perante
Os copos

Na face: rugas
Cavidades da vida
Marcas do tempo
Coração em pêndulo

Subitamente
A memória
Falhará,
Fechará
O cerco

Irão amores
Amigos
Mementos

A espinha
Ereta
Curvará
Em cumprimento
Eterno?

E a fragilidade
Será sem-vergonha

Inevitavelmente
Cairá em leito
Num sopro
Horizontal

Será fatal
Por ter sido
Humano

INTERVALO

Está suspenso
O momento

E a demora
Arrasta
Brusca
A chuva

Desaguará
Em bifurcações
Ilusão?

No reverso
Continuarei
Meus passos,
Os melhores

E de lá
Versarei
A teus pés
O que seguro
Firme
Entre
As mãos

EU LUA

A lua
Está cheia

Lotada
De sentimentos
Que transbordam
Aos olhos
O branco
Que contrasta
O que é (ou está)
Turvo

Instantes
Duradouros
De admiração
Que nos engole
Absorve

Permito-me
Antropofagicamente
Além
Dos ossos
Que sustentam
Meus pilotis
Frágeis

Seguimos
Imanadas
E a estrada
É traçada
Ao vivo

24.8.10

RIMA

o viço da pele
no cio da carne
nada fere
tudo arde

a flor dos poros
no fogo da língua
abre os olhos
fecha a míngua

o susto do fôlego
na cicatriz da unha
traz o trôpego
afasta a munha

a trança das pernas
no umbigo do mundo
solta as feras
...

e as prende no fundo

23.8.10

TRILHAS



Colocou no ‘headphone’ uma música feliz. Ensaiou um balançar de cabeça e um sorriso tímido. Fechou os olhos. Era assim que as pessoas pensavam melhor. Era quase ano novo.
Enquanto a música tocava aguou as plantas, fez brigadeiro, arrumou a mochila, calibrou os pneus. Enquanto a música tocasse seria feliz.
Pegou a estrada e saiu sem rumo, sem companhia, sem olhar para trás.
Não fazia sol, nem chovia. O céu estava nublado e isso a confortava como se atingisse um equilíbrio temporal. Algo tinha de ser controlado nesse acaso, pensou. Acelerou.
Chegou ao começo da noite a seu destino, mas não sabia que o sentido de destino seria prolongado, se daria conta no instante em que o sol queimasse seus cílios e o mulato lhe beijasse a boca.
Quinze anos passariam até que ela saísse outra vez, dessa vez um pouco cansada, um pouco feliz e muito confusa.
Voltou ao lugar de onde saiu e não reconheceu nada, nem a parede descascada, nem o cão que lhe afagou os pés, nem a música que ainda tocava no mesmo ‘headphone’. Só soube estar ali quando viu a fotografia na estante. Estava amarelada, mas os lábios do mulato ainda ardiam.
Desligou a música, chamou o cachorro para dentro, mas não conseguiu dormir.